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terça-feira, 20 de junho de 2017

Morrer de Poesia 
[Se te queres matar]Porta de entrada para um mundo chamado: Fernando Pessoa.

Álvaro de Campos "in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 

*(Personagem fictício criado por escritores cujo o objetivo é tentar compreender e propagar diferentes maneiras de ver a realidade exterior\interior, tentando manter distancia da visão da realidade ortônima (real, verdadeiro). O autor assina com seu nome verídico a obra, ou seja, quando não se faz uso de pseudônimo).

Se te queres Matar

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve teu mundo interior que desconheces?

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
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Pessoa escreveu esse poema no 10º aniversário
do suicídio do seu grande amigo Mário de Sá Carneiro.
O poema demonstra toda raiva e ironia que Pessoa sentia

pelo acontecido contudo não é um ode ao suicídio.


Este discurso é o que precede e não necessariamente o suicídio em si, não são muitos que compreendem a complexidade dos poemas de Fernando Pessoa. Aqui no poema talvez, ele queira exprimir e matar um desejo ou saciar ideias. 

Porém, no sentido em que a vida deixa de interessar, ou pesa menos na balança do que deve haver entre vida e morte pode ser que, "peses mais durando, que deixando de durar".
O fim ultimo parece uma boa solução para quem tem problemas graves. A pergunta de Álvaro Campos (Fernando Pessoa) interpela-nos sempre é: "Se te queres matar, por que não te queres matar?" O indício para refletir no porquê levamos uma vida na qual não gostamos? 


Questões que se colocam a quem é mais sensível e que absorve como uma esponja o que de bom ou de mau se passa á sua volta, e a quem necessita de respostas mais profundas ás perguntas que faz,muitas vezes, a si mesma, não contentando com a superficialidade nem da vida, nem das pessoas.

"Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Á parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo". Álvaro de Campos, em Tabacaria.

Da razão á contradição os poemas de Fernando Pessoa são no mínimo perturbadores. Explicita o que acontece com cada um de nós.
A homilia negativa tem um intuito de ressaltar o nenhum valor da vida. Campos defende o suicídio do seu interlocutor e enumera uma série de argumentos que conduzem ao convencimento da inutilidade da vida.Uma espécie de profecia da escuridade, que marca toda a fase do "Engenheiro Metafísico", prenuncio da Tabacaria de 1928, monumento do pessimismo e do fracasso de viver. Posso dizer que mesmo tenebroso e sombrio o poema é certeiro e universal onde, lendo-o, nós mesmos nos lemos.

Um grande desprezo pela vida e uma imensa ironia é lançado ao ego de quem ele se dirige. Se o seu interlocutor possui ainda alguma esperança de merecer sentimentos como amor e afeto, vê-se então na condição de um órfão.

Nesse poema,o ser humano transforma-se no que Heidegger chama de "o-ser-para-a-morte", onde o poeta nega o valor da nossa existência pequena e sem importância, a vida é só um acidente e mais nada.
Absolutamente mais NADA.

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